Mecanismo de Realocação de Energia

O setor de energia elétrica é um dos setores mais difíceis de se analisar. Cada uma de suas etapas, Geração, Transmissão e Distribuição, tem suas peculiaridades próprias. É quase tão diferente quanto montar, vender e alugar carros, que só possuem em comum envolverem carros. Para resumir rapidamente a conclusão a que cheguei analisando o setor elétrico eu diria que a lógica frequentemente te engana no setor elétrico.

Pegue a geração de energia, por exemplo. A receita das hidrelétricas não é proporcional a sua geração de energia. Além disso, usinas hidrelétricas não escolhem o quanto geram de energia. Para terminar, a capacidade instalada, um número muito ligado a uma usina hidrelétrica, não é um indicador muito útil.

Todos esses fatos estranhos estão relacionados com o Mecanismo de Realocação de Energia (MRE), uma das muitas siglas do setor elétrico. Como se um conceito não fosse suficiente para tornar complexa a questão, é necessário entender ainda a garantia física e o despacho centralizado para entender o MRE.

No modelo atual do setor elétrico, as usinas hidrelétricas e termelétricas geram energia de acordo com as ordens (“despacho”, para usar o termo mais técnico) vindas do Operador Nacional do Sistema (ONS, sigla difícil de digitar já que o Word e o Excel autocorrigem para NOS). De acordo com as informações de oferta e demanda de energia e procurando calibrar a geração hidrelétrica para gerenciar os reservatórios, o Operador vai ordenando que as usinas gerem mais ou menos energia. Quando a projeção é que os reservatórios irão abaixar, o Operador procura reduzir o despacho hidrelétrico e aumentar o despacho térmico. Tema para outro texto, aqui entra mais um zoológico inteiro de termos técnicos como Despacho Fora da Ordem de Mérito, Bandeiras Tarifárias e outros que, felizmente, não são necessários para entender o tema principal.

Se as usinas hidrelétricas não escolhem o quanto vão gerar de energia, a princípio não escolheriam o quanto vendem e o quanto faturam. Isso poderia gerar uma série de problemas, beneficiando uns e prejudicando outros, potencialmente até de forma intencional, e traria uma incerteza enorme para o setor. Aqui entra o Mecanismo de Realocação de Energia (MRE). Todas as usinas hidrelétricas (e, opcionalmente, as Pequenas Centrais Hidrelétricas) fazem parte do MRE, que funciona como um consórcio de usinas. Se a decisão de despacho é centralizada, a distribuição de receitas deveria, de alguma forma, também ser centralizada. De maneira muito simplificada, o MRE distribui as receitas geradas pelos seus componentes entre os consorciados.

Mas qual é o critério para fazer essa distribuição? Mencionei anteriormente que a capacidade instalada não é um dado muito útil para analisar uma geradora de energia, o que leva para a pergunta: então, o que é útil? E aqui entra a garantia física, também conhecida como energia assegurada, lastro de energia ou energia comercializável.  Se um negócio tem vários nomes, você presume que é algo importante e complicado. Ambas suposições estão corretas.

Pela definição da Empresa de Estudos Energéticos (EPE), garantia física “determina a quantidade de energia que um equipamento de geração consegue suprir dado um critério de suprimento definido”. Segundo a Aneel, a garantia física “correspondente à quantidade máxima de energia relativa à Usina que poderá ser utilizada para comprovação de atendimento de carga ou comercialização por meio de contratos”. Fiz uma contraposição da garantia física à capacidade instalada na medida em que ambos estão na mesma grandeza, MWm (Mega Watts médios).

A garantia física possui diversas aplicações e talvez tenha sido um erro que assumisse todas essas funções. Uma fonte de informações interessante sobre a garantia física é um episódio do podcast da PSR Energy sobre esse assunto, de onde tirei as três funções da garantia física que vou mencionar. A primeira é para estudos de planejamento do setor elétrico e segurança de suprimento, o que é bastante condizente com a primeira definição. Uma função mais econômica é que a garantia física é um limite máximo de venda de contratos que um gerador pode comercializar. E aqui o contraste com a capacidade instalada é bem forte: se a sua capacidade instalada é 100 MWm, você não pode comercializar 100 MWm, podendo, no máximo, comercializar a sua garantia física. Na prática a garantia física acaba sendo uma porcentagem da capacidade instalada, mas essa porcentagem varia de acordo com o tipo de usina e com o empreendimento específico.

A terceira função vai de encontro com o tema principal deste texto: a garantia física define o fator de participação no MRE. Como discutido anteriormente, as usinas hidrelétricas são despachadas de maneira centralizada e meio que formam um consórcio. A participação de cada usina nesse consórcio é proporcional à sua garantia física.

E como isso afeta a receita das hidrelétricas? Sendo um consórcio com “cotas” definidas pela garantia física, é como se o consórcio alocasse a energia total gerada de acordo com a “cota”. Para um exemplo numérico simples, se a garantia física da sua usina é 100 MWm, deveria receber 100 MWm, nem mais, nem menos. Se gerou mais do que isso irá vender para quem gerou menos e vice-versa. Pode parecer uma coisa positiva ter que vender energia gerada em excesso, mas não é muito já que o preço é definido pela Tarifa de Otimização de Energia (TEO), que é extremamente baixa. Para 2020, a TEO foi definida em R$ 12,77/MWh, que é um valor praticamente irrelevante. Melhor vender do que comprar energia no MRE, mas não muito melhor.

O exemplo acima ilustra a situação ideal na qual as usinas componentes do MRE coletivamente produzem energia em montante que iguala a soma das garantias físicas. Porém, o valor gerado pode ser superior ou inferior a essa soma. Quando superior, as usinas têm direito ao que se chama de “energia secundária” e tem mais energia para vender. Porém, essa energia é vendida ao PLD (Preço de Liquidação de Diferenças), que é o preço spot da energia. Ou seja, a geradora vai ter mais energia nos períodos em que a energia é mais barata porque há excesso de energia no mercado.

O maior problema é quando as usinas do MRE geram menos energia do que a soma das garantias físicas chegando ao que se chama de GSF (Generation Scaling Factor), que em português é muitas vezes denominado Fator de Ajuste do MRE. E aqui entra um dos pontos mais importantes para as geradoras de energia hoje em dia: a comercialização de energia. As geradoras negociam contratos de compra e venda de energia, seja para distribuidoras no mercado cativo, seja para clientes livres no mercado livre. Há duas modalidades de contrato: por disponibilidade e por quantidade. Na segunda modalidade, a geradora terá que entregar a quantidade definida em contrato. Se comercializou 100 MWm, terá que entregar 100 MWm. Se recebeu do MRE 80 MWm (que, conforme já vimos, é diferente de gerar 80 MWm), então terá que cobrir essa diferença. Pode fazer isso ativamente comprando energia de outra usina ou pode não fazer nada. Se nada fizer, irá comprar 20 MWm no mercado spot ao PLD (por isso que se chama Preço de Liquidação de Diferenças). Se as usinas do MRE geraram menos do que a soma das garantias físicas, isso significa falta de energia no mercado o que, por sua vez, significa preço elevado. Se as hidrelétricas estão produzindo menos energia, alguém precisa produzir mais e esse alguém são as usinas termelétricas, que são mais caras. Mesmo que as mais baratas sejam (normalmente) despachadas primeiro, é óbvio que o acionamento de mais termelétricas significa preços mais altos. Logo, esse déficit de 20 MWm vai sair caro para a usina se ela tiver que cobrir a diferença pagando o PLD.

Nos últimos anos o GSF médio tem sido inferior a 100% na maior parte dos anos. Ao longo do ano há uma grande variabilidade de forma que o ano pode começar com energia secundária e lá para o meio do ano ter GSF de 70, 80%. A vida das geradoras se tornou extremamente desafiador nesse cenário. Não podem mais comercializar 100% da sua garantia física sob o risco de ter que comprar energia cara quando o GSF for abaixo de 100%. A AES Tietê, por exemplo, teve prejuízo bruto em alguns trimestres de 2014 porque tinha comercializado 100% da sua garantia física (em um contrato antigo) e teve que comprar energia no mercado spot a preços superiores ao seu preço de venda.

Esse contrato venceu e a empresa passou a vender energia mais barata. E aqui temos mais uma situação que desafia a lógica: isso foi ótimo para a empresa! Não exatamente porque o preço abaixou, mas porque passou a ter uma flexibilidade que não tinha antes. Não apenas foi capaz de reduzir a sua comercialização (como parte da estratégica de mitigação de riscos do GSF), como também passou a sazonalizar a sua garantia física. O padrão é que a garantia física seja distribuída de maneira uniforme ao longo do tempo, mas é possível converter em valores mensais diferentes ao longo do ano. Dessa forma, a usina pode receber menos energia nos meses em que o GSF está mais próximo de 100% e receber mais quando estiver mais longe de 100% e, dessa forma, mitigar o seu risco. Vencido o contrato antigo, que era mais rígido, a empresa passou a poder sazonalizar a sua garantia física além de reduzir o seu grau de comercialização.

A última estratégia é comprar contratos de energia de um terceiro, o que é outra coisa que parece não fazer sentido. É como se uma pizzaria comprasse pizzas de outra pizzaria para revender para os clientes. Nesse caso, porém, faz todo sentido. A geradora pode se proteger de uma alta nos preços se a chuva vier abaixo do esperado e terá um ganho (ou perda menor) se o preço de compra dessa energia for inferior ao PLD.

Tudo isso para explicar que a receita de uma geradora hidrelétrica depende da comercialização de energia por meio de contratos, o que depende da sua garantia física. Os resultados, por sua vez, dependem do GSF.